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  • Foto do escritorEstêvão Palitot

1872 e 1890 | Os indígenas nos censos do século XIX

Atualizado: 22 de jan. de 2023

Neste mapa apresentamos a população indígena em Pernambuco de acordo com os censos de 1872 e 1890 e comparamos com um relatório sobre a situação dos aldeamentos de 1873.


Imagem da capa:


A segunda metade do século XIX foi um período de intensas mudanças políticas, econômicas e sociais no Brasil. Diferentes níveis da vida cotidiana foram alterados por essas mudanças e nem sempre elas se moviam na mesma direção.


A lenta abolição da escravidão implicou que o estado imperial buscasse criar novos meios de manter o controle fundiário e populacional, reforçando os interesses das elites agrárias locais. Conhecer as características da população heterogênea que compunha o Império era fundamental nesse processo, daí a realização do primeiro censo nacional no ano de 1872 como ferramenta de conhecimento e planejamento das ações do governo.


Ao mesmo tempo em que se buscavam informações sobre a população, inclusive a escravizada, havia um direcionamento para a produção de uma homogeneização e hierarquização social. Nesse sentido, a ideia da mestiçagem ganhava força a partir da racialização dos diferentes grupos sociais do país. Esta ainda não era a versão elogiosa do mito das três raças que só vai se consolidar a partir dos anos 1930, mas cumpria bem o papel de reduzir a imensa diversidade do Brasil em quatro grandes grupos.


É assim que o censo de 1872 traz entre seus principais quesitos o da raça, ao lado de outros como a condição jurídica (livre ou servil), sexo, religião, etc. Os dados desse censo apresentam 4 raças: brancos, pardos, pretos e caboclos. Os pardos indicariam os mestiços, independente de suas origens, e os caboclos eram explicitados como os de raça indígena. Produziu-se então um ordenamento e hierarquização da população brasileira dividindo-a em livres (brancos, pretos, pardos e caboclos) e escravos (pretos e pardos), sendo a condição jurídica o recorte principal, seguido pelo de raça (Paiva et. Al, 2012; Camargo, 2018; Oliveira, 2012).


Outros recortes possíveis para a população indígena não foram aplicados, tais como as línguas faladas ou critérios de pertencimento étnico e territorial. A população indígena foi percebida pela ótica da raça e categorizada a partir de sua posição em relação ao instituto jurídico da escravidão, onde constava como livre. Embora a escravização de indígenas fosse proibida por lei, ela ocorria em muitas regiões do país de modo dissimulado (Dornelles, 2018; Ramos, 2004).


Ao mesmo tempo em que o censo de 1872 era planejado e executado, uma outra política oficial era implementada nas províncias de colonização mais antiga, como Pernambuco: a supressão e extinção dos antigos aldeamentos, que promovia a desagregação das instâncias organizativas indígenas através da demarcação, loteamento e alienação das terras das aldeias.


A maioria dessas aldeias já possuía uma longa trajetória como centros missionários e vilas de índios, com as suas populações tendo experimentado diferentes regimes jurídicos e administrativos. Sobre elas pesavam interesses de potentados rurais, que louvavam a fertilidade e a bonança das terras ao mesmo tempo em que depreciavam as populações aldeadas acusando-as de indolentes, mestiças e degeneradas. Pintavam um quadro negativo dos aldeamentos clamando que terras tão férteis deveriam trocar de mãos para que pudessem gerar riquezas. Pois, sob o controle dos indígenas, essas não produziam os bens comerciais das quais eram capazes. Além disso, a ineficiência do sistema de Diretoriais Gerais e Parciais dos índios em cada Província terminava contribuindo para o assalto generalizado às terras das aldeias, que eram arrendadas ou aforadas para terceiros, que em pouco tempo deixavam de pagar as rendas e passavam a reivindicar a propriedade de engenhos e fazendas dentro dos limites das aldeias (Cunha, 1992; Silva, 1995; Carvalho, 2007; Nascimento, 2006; Ferreira, 2006; Valle, 2009; Dantas, 2011; Valle, 2011).


Outro argumento muito mobilizado era o de que essas aldeias serviam como abrigo para indivíduos em confronto com as leis e os poderes vigentes, constituindo-se em “valhacouto de vadios e facinorosos”. Também alegava-se, com base no pensamento racialista da época, que os índios estariam confundidos na massa geral da população, misturados, e que, portanto, não fariam mais jus à posse de terras comuns das aldeias. Deveriam, a partir de então, receber lotes individuais, o que os transformariam em pequenos proprietários com capacidade civil para ter essas terras alienadas futuramente (Silva, 1995; Oliveira, 1998).


Desse modo, entre os anos de 1860 e 1890, foram constituídas comissões de demarcação de terras sob a direção de engenheiros civis que tinham por atribuição operar as medições e as demarcações das terras públicas, incluindo as terras das aldeias. Em Pernambuco essas comissões atuaram sabidamente em cinco aldeias: Escada, Barreiros, Riacho do Mato, Ipanema e Brejo dos Padres (Silva, 1995; Ferreira, 2006; Palitot, 2022).


Assim, o censo geral do Império em 1872 e a política de extinção das aldeias se entrecruzaram nesse período em Pernambuco e a produção de dados estatísticos era peça fundamental para a execução das políticas de redefinição dos controles territorial e populacional. É nesse sentido que apresentamos nesse mapa a confrontação das informações do censo de 1782 com aquelas prestadas por uma comissão designada pelo presidente da província de Pernambuco em 1873, que tinha como finalidade emitir parecer sobre as aldeias desta Província que devem ser extintas, e lembrar as medidas mais convenientes a fim de que essa extinção seja levada a efeito (Mello, 1975, p. 339).



Além do confronto entre essas duas fontes. Apresentamos os dados do censo de 1890, o primeiro do período republicano, mas ainda pensado e executado segundo as lógicas do período imperial. Exemplo disso é a manutenção da mesma categorização racial da população e o uso das paróquias como unidades básicas para o recenseamento, seguindo o que havia sido feito no censo de 1872, que por sua vez repetia o padrão colonial de contabilização da população a partir do rol de desobriga dos párocos de cada freguesia.


Em comparação com o censo anterior, o de 1890 também apresenta uma distribuição da população cabocla (indígena) bastante generalizada, presente em quase todas as freguesias de Pernambuco. Ao que se soma um aumento significativo desse contingente populacional entre os dois recenseamentos, de um total de 11.805 caboclos em 1872, registram-se 79.412 em 1890.


Um aumento impressionante porém pouco compreensível em termos apenas demográficos. João Pacheco de Oliveira (1999, p.140) identificando esse mesmo padrão para os resultados de todo o Brasil em ambos os censos indica a possibilidade de uma incorporação na categoria dos caboclos de filhos de uniões entre negros e indígenas, o que por si só alteraria o modo como a categoria caboclo era definida. Contudo, não existem mais os microdados do recenseamento de 1890 que nos permitiriam especular sobre essa hipótese ou outras (Dias e Verona, 2018). Até mesmo porque nos censos posteriores os indígenas passaram a ser contados no contingente dos mestiços (pardos).


Ao compararmos ambos os censos do século XIX com as informações do relatório da comissão para as aldeias de Pernambuco os números de indígenas entre essas fontes não são compatíveis entre si. Tomando o relatório de 1873 como base, pois ele recupera informações da Diretoria Geral de Índios dos anos de 1855, 1859 e 1861, observamos que apenas na aldeia de Barreiros os números se aproximam nas três fontes.


Já a aldeia de Riacho do Mato com aproximadamente 400 indígenas, ficava na freguesia de Água Preta, que em 1872 tinha uma população de 527 caboclos, tornando plausível a relação entre o relatório de 1873 e um dos censos.


Se compararmos apenas os censos entre si, merece atenção a aldeia de Cimbres, com sua população subdivida em duas freguesias (Cimbres e Pesqueira) e cujas somas se aproximam: 2305 caboclos em 1872 e 1871 caboclos em 1890. Ainda assim com uma diferença significativa de mais de 400 pessoas.



Tabela 1: Quantidade máxima de indígenas nas aldeias de acordo com o relatório de 1873 e população de caboclos nas paróquias das aldeias de acordo com os censos de 1872 e 1890.

ALDEIA

PARÓQUIA

​RELATÓRIO DE 1873

CENSO DE 1872

CENSO DE 1890

Assunção

​Cabrobó

​620

89

1943

Baixa Verde

Triunfo

-

134

1908

Barreiros

Barreiros

460

416

511

Brejo dos Padres

Tacaratu

580

213

650

Cimbres

​Cimbres e Pesqueira

​861

(59) + (2246)

(468) + (1403)

Escada

Escada

​"crescido número de índios"

155

85

Ipanema

Águas Belas

738

​253

1020

Riacho do Mato

Água Preta

400

527

2350

Santa Maria

​Boa Vista

104

​82

512

A situação confusa se repete quando comparamos as dez paróquias com maior número de caboclos em ambos os censos e observamos como os números e as posições variam de modo muito aleatório. Água Preta, que continha uma aldeia em sua paróquia aparece nas duas listas, mas Pesqueira desaparece, sendo substituída por Papacaça (Bom Conselho) que apesar de aparecer em ambas as listas tem um aumento exponencial de sua população indígena.


Tabela 02: As dez paróquias com a maior população de caboclos nos censos de 1872 e 1890

Paróquia

Caboclos (1872)

Paróquia

Caboclos (1890)

1

Pesqueira

2246

Papacaça​

4534

2

Fazenda Grande

851

​Ouricury

4222

3

Garanhuns

556

Panellas

​3537

4

Água Preta

527

​Exu

3501

5

Bom Jardim​

502

​Quipapá

3387

6

Barreiros​

​416

​Bonito

2861

7

Petrolina

374

Petrolina

2357

8

Papacaça​

364

Água Preta

2350

9

S. José de Ingazeira

352

Gravatá

​2127

10

Iguarassú

292

Pajehú de Flores

2059


Como fica evidente os censos de 1872 e 1890 nos trazem mais perguntas do que respostas com relação à presença da população indígena na então Província de Pernambuco. Apesar de indicaram uma possibilidade de percebermos a capilaridade da presença indígena para além dos espaços territorializados dos aldeamentos há muitas lacunas que não conseguimos preencher ainda. De qualquer modo é possível perceber que havia tanto na operação do censo quanto na extinção das aldeias um processo articulado de redefinição dos princípios de classificação e percepção da população brasileira, com uma ênfase crescente na mestiçagem como um fator de homogeneização e subalternização.


Não mais grupos étnicos singulares vinculados a territórios e políticas específicas, como nos aldeamentos, e sim uma grande massa geral anônima, da população pobre, de cor, que deveria subordinar-se à disciplina do trabalho e ao direcionamento por uma elite que controlava todas as instâncias econômicas, políticas, judiciais e culturais. A propriedade privada da terra combinando-se com uma sociedade capaz de ser contabilizada a partir de seus indivíduos anônimos e silenciosos. Dos censos aos cartórios a invisibilização de segmentos etnicamente diferenciados se consolidava ao final do século XIX. O progresso vinha chegando, sob muita ordem, e falar de indígenas seria, a partir de então, remeter a um passado distante e morto, tal qual as Iracemas, Peris e Timbiras dos literatos indianistas.


Referências:


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