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  • Foto do escritorEstêvão Palitot

1739-1839 | O PAÍS DA JUREMA

Atualizado: 5 de fev. de 2023

A expansão dos cultos com a planta da jurema pelos sertões.


Por: Estêvão Martins Palitot. Adaptado do artigo O país da jurema: revisitando as fontes históricas a partir do ritual atikum, de autoria de Estêvão Palitot & Rodrigo Grünewald (2021).



Neste mapa podemos observar a expansão dos cultos envolvendo a planta e a bebida da jurema no período de um século, entre 1739 e 1839.


A jurema é um arbusto de nome científico Mimosa tenuiflora (Wild.) Poiret, pertencente ao gênero Mimosa da família Leguminosae, que está presente em regiões tropicais e subtropicais ao redor do mundo. Possui cerca de 350 espécies endêmicas na América Latina. Embora seja impossível saber quais eram exatamente as juremas usadas pelos indígenas na documentação histórica, consideramos importante identificar esta espécie, pois é a que contém o alcalóide psicoativo N,N-dimetiltriptamina (DMT) responsável pelos efeitos de alteração da consciência, como transes extáticos e visões (Grünewald, 2020, p. 36 e p.43).


A bebida de uso ritual é feita com a infusão da entrecasca da raiz da jurema, macerada e lavada em água. A bebida para ser considerada consagrada e pronta para o uso precisa ser defumada com tabaco (Nicotiana tabacum) e orações. Além da jurema, pode-se adicionar outras ervas e cascas na bebida, o que nem sempre ocorre. Outras plantas e bebidas estão associadas ou complexo ritual da jurema como jucá, junça, angico, caroá, coité, alho, maracujá, manacá, aguardente e mel de abelhas silvestres. Seu uso pode variar de grupo para grupo e também dependendo da ocasião e dos propósitos de cada ritual.



Os rituais com a jurema tiveram origem entre os indígenas aldeados nos sertões do País dos Tapuias e se expandiram rapidamente. Primeiro, através das redes de contato entre os indígenas das missões e, logo em seguida, entre a população colonial mestiça. Um desafio constante à ordem política e ideológica oficial que tratava essas práticas com grande preocupação e intensa repressão.


As referências mais antigas ao uso da bebida da jurema raramente aparecem nas vozes indígenas. E mesmo quando aparecem, vêm traduzidas e filtradas pelos produtores dos textos escritos, principalmente padres e outras autoridades coloniais. Na maioria dos casos são descrições lacônicas, curtas, pequenas listas de práticas e objetos. Atas de reuniões da Junta das Missões, relatórios de governadores, registros burocráticos, itens do Diretório dos Índios e recomendações práticas aos vigários das vilas de índios são as fontes mais corriqueiras. Nelas se alertava para o perigo das práticas que envolviam a sua célebre e antiga bebida chamada jurema (Lopes, 2005, p. 323). Que deixava os índios ilusos, e com visões, e representações diabólicas, pelas quais ficam persuadidos não ser o verdadeiro caminho o que lhe ensinam os missionários (Cruz, 2019, p. 204).


Certos relatos estão marcados tão fortemente pelos filtros culturais dos denunciantes que só com um certo esforço interpretativo podemos identificar a possibilidade da bebida da jurema por baixo das camadas semânticas da demonização católica das alteridades indígenas coloniais. Este é o caso de uma denúncia feita em 1748 na Missão de Miranda dos Cariris Novos, em que se fala de uma "bebida de sangue" que uma mestra parda ministrava à três jovens mulheres, duas indígenas e uma mestiça (Cruz, 2019. p.212-13).


Contudo, alguns desses relatos são mais detalhados. Descrevem pormenores do ritual, de seus participantes, objetos, práticas e intenções. Nos falam também da repressão e de todo o quadro social que envolvia esses eventos. Assim, a partir dessas denúncias e confissões podem ser recuperadas imagens poderosas daqueles períodos históricos. Os rituais envolvendo a bebida da jurema são parte de um universo maior, marcado pelo choque desigual entre horizontes culturais plurais. Impossível dissociar a emergência desses rituais da confrontação entre as dimensões indígena e colonial. A jurema emergiu como ritual justamente numa fase avançada da colonização no Brasil, inexistindo registro anterior a 1739, pelo menos até o nosso conhecimento atual (Medeiros, 2006, p. 124). É o século XVIII o grande produtor de informações sobre a jurema tanto em número como em qualidade das fontes.


Este foi o século da consolidação da ocupação colonial dos sertões, da crise dos aldeamentos e da reforma pombalina que visava reestruturar a administração do vasto império português a partir de critérios racionais (Galindo, 2017) . A jurema emergiu então como prática cultural desafiadora, de claras origens indígenas, mas já em contexto colonial e atravessando fronteiras étnicas e sociais. Nesse sentido, nos lembra a Santidade de Jaguaripe (Vainfas, 1995) mas não necessariamente os rituais dos Tarairiú e dos Kariri do século XVII que guardavam ainda bastante autonomia em relação aos poderes coloniais. Por outro lado, muitos elementos dos rituais descritos para os Tarairiú e Kariri voltam a aparecer nos ritos com a jurema no século seguinte, em especial as danças coletivas, o fumo, os maracás e a manifestação de entidades espirituais (Nascimento, 1994; Pompa, 2003; Reesink, 2002).


Se havia jurema nos rituais dos Tarairiús e Kariris do século XVII, nem os cronistas holandeses, nem os missionários jesuítas e franciscanos foram capazes de observar. Muito provavelmente porque não tinham acesso pleno aos recintos mais íntimos dos rituais, realizados no interior de cabanas construídas especialmente para receber os entes espirituais.


Nota sobre o mapa: Cada referência sobre o uso da jurema aparece indicada por um ícone com um maracá. Os círculos menores são outros locais mencionados nos mesmos documentos, porém com menos detalhes.
Como navegar: Ao passar o cursor por cima dos pontos do mapa é possível conferir as referências textuais sobre o uso da jurema.

E que país é esse representado nesse mapa? É muito mais o país do nosso sonho e do nosso desconhecimento. Informado pela fragmentação e a descontinuidade das fontes é o registro possível da imagem irrecuperável do passado tal qual ele foi. Cada pontinho é uma pequena centelha, uma tênue faísca que mais acende a imaginação do que preenche a racionalidade com informações objetivas. É o país das indagações. Em nosso atual estágio de conhecimento e com muito esforço de leitura e cotejamento de fontes históricas e trabalhos acadêmicos podemos indicar talvez duas dezenas de registros originais sobre os rituais envolvendo a jurema nos séculos XVIII e XIX. Alguns desses registros são, literalmente, notas de rodapé em alentados tratados históricos (Regni, 1988; Medeiros, 2006; Cruz, 2019).


Ainda assim podemos ver os contornos gerais do País da Jurema correspondendo aos vastos sertões semiáridos por onde se expandiram as velhas capitanias do norte do Brasil. Sertões dos tapuias de corso, mas também das bandeiras, das boiadas e dos missionários. As balas, os bois e a bíblia, que atuaram para moldar os sertões e seus povos. Nem sempre agindo de modo convergente, mas produzindo efeitos duradouros por meio de violências físicas e simbólicas. O País da Jurema é o país dos confrontos fundantes da sociedade colonial. E a jurema, enquanto planta, bebida e ritual um meio dos povos subalternizados reinscreverem-se nessa mesma sociedade. Uma prática de cura para enfrentar o terror cotidiano (Taussig, 1987).


As notícias sobre a jurema


A rapidez com que o culto da jurema se espalhou a partir dos aldeamentos dos tapuias é impressionante. Em apenas duas décadas (1739-1760) foram registrados rituais com jurema do litoral do Rio Grande aos sertões do Piauí, do Apody entre o Ceará e o Rio Grande ao vale do Itapicuru na Bahia. Até a década de 1780 as notícias sobre a jurema se espalharam ainda mais e atingiram as margens orientais do Tocantins e a Serra da Ibiapaba, entre muitos outros importantes centros de população indígena. A jurema aparece repentinamente, como um elemento dinamizador das vidas indígenas no contexto dos aldeamentos e mobiliza sentimentos e ações poderosos.


A referência mais antiga à jurema é aquela de 1739-1742 na qual os Canindés da aldeia da Boa Vista, na Paraíba, foram reprimidos por uma visitação ordenada pela Junta das Missões de Pernambuco. A repressão foi violenta e a reação dos indígenas incisiva, noticiando-se mortos e feridos. Tudo deu errado e era grande o risco de que a aldeia se esvaziasse e os índios se metessem nos matos. Aliás, esse era um dos grandes medos reportados pelos agentes coloniais. Perder o controle dos indígenas nos aldeamentos e eles recuperarem uma vida autônoma nos amplos espaços vazios do controle oficial (Wadsworth, 2013; Freire, 2015).


Ainda na década de 1740 a jurema foi mencionada nas missões capuchinhas do Sertão do Piancó, na capitania da Paraíba, e nas ilhas do submédio São Francisco, entre Pernambuco e Bahia. Na década seguinte as informações provêm de aldeamentos no Apodi e Mipibu, no Rio Grande; dos Cariris de Pilar, na Paraíba; da missão de Natuba, na Bahia, e provavelmente da missão do Miranda, no Ceará (Cruz, 2019; Regni, 1988; Santos, 2012).


Tão rápida e intensa disseminação dos cultos da jurema alertou as autoridades religiosas e civis e já entre 1758-60 apareceram normas e recomendações alertando os diretores e os párocos das novas Vilas de Índios para não consentirem e abolirem inteiramente o uso das juremas contrário aos bons costumes e nada útil, antes prejudicialíssimo à saúde das gentes, como consta na versão do Diretório dos Índios aplicada à Pernambuco e suas capitanias anexas (Medeiros, 2000, p. 183). Mais detalhada ainda era a recomendação episcopal para que os vigários fizessem todos os meses “...uma inquirição geral de pessoas fidedignas e mais católicas dos seus fregueses” com objetivo de que fossem denunciados os indígenas


que usam de feitiçaria, ou se ainda permanece neles o costume inveterado de Parissês, com os infernais instrumentos de toréns, maracás, canzaes, umbaúbas, ingarassus, ou célebres maracás a que dão o título de mestre, que são os que usam os seus desastrados pajés, a que nós chamamos feiticeiros; e se ainda usam de pitagorias* como crendo nas cantorias dos pássaros e que as almas quando saem dos corpos vão para a Ilha de Jumari, ou se usam de outros quaisquer ritos gentílicos como beber jurema para efeito de verem os anjos ou outras extraordinárias visões, e se ainda usam da antiga língua reprovada pelo rei, e achando compreendidas qualquer pessoa, de tudo formará sumário em segredo, elegendo para escrivão qualquer reverendo sacerdote, e autuando na forma do estilo, o remeterá ao Ver. Vigário Geral da Comarca para este providenciar como for justiça e mandar passar ordens necessárias para serem presos os delinquentes, observando em tudo os pastorais”. (Lopes, 2005, p.322/323)



Um intenso rol de práticas e concepções indígenas que estavam na mira das autoridades. Incluída nessa lista a jurema e as próprias línguas nativas. Na mesma época, o novo pároco da Vila de Índios de Arês, no Rio Grande recebeu suas instruções do visitador que lhe encarregou evitar aos índios que não pratiquem a sua célebre, e antiga bebida chamada jurema que é constante bebem em lugares retirados, por ser bebida forte ficam embriagados, e alienados do juízo, e fingem visões indignas de católicos, cujos erros se devem extinguir (Sales Neto, 2004, p.185).


Com a instalação do diretório pombalino as vilas de índios passaram a concentrar os esforços disciplinadores das elites coloniais a partir da aplicação dos métodos mais racionais e modernos oriundos do iluminismo europeu nos sertões do Brasil. Em meio a expansão da malha de controle colonial do Diretório, os mestres da jurema percorriam os caminhos dos sertões passando por fazendas e vilas, aldeias e sítios. O culto se expandiu mais ainda. Foi relatado entre os Amanajós das margens orientais do Tocantins em 1768 (Noronha, 1768 in Lima, 1946).


Pelos sertões de Pernambuco e do Piauí por volta de 1760 era comum beber-se a jurema não só com pretexto de curativo, senão para ver a Deus e as almas dos defuntos e estes abusos praticam não só os negros e vermelhos, mas ainda os brancos, com tanto escândalo que já na vila de Mocha tirou uma devassa respectiva a um feiticeiro que fazia as respectivas cerimônias. Objetivos práticos eram incessantemente buscados daí muitos homens contratarem alguns “feiticeiros” para proteger as suas casas e famílias de venenos, cobras e chumbo. Lembrando que a Vila da Mocha, logo depois, cidade de Oeiras, era o principal núcleo urbano de um vastíssimo sertão que se estendia entre os rios São Francisco, Parnaíba e Tocantins (Cruz, 2019, p.208).


Na serra da Ibiapaba, no Ceará, ficava o maior aldeamento missionário das capitanias do Norte, com quase seis mil almas indígenas Tabajara e Tapuia. Em 1760 foi elevada à Vila Viçosa Real, e alguns anos depois era noticiado certos índios embrenharem-se nos matos passando muitas vezes alguns dias sem comer e embriagando-se com diversas espécies de vinho feito de jurema e de várias outras plantas, ou frutos do mato, que umas vezes os faz dormir por largo tempo, outras vezes os constituem maníacos furiosos e visionários, outras enfim até os faz perder a vida (Cruz, 2019, p. 223). Ao que parece essa descrição corresponderia a algum tipo de exercício xamânico ou ritual de passagem como forma de aprender a controlar a si mesmo, aos poderes espirituais propiciados pela bebida e o contato com os espíritos, tornando o aprendiz que sobrevivesse a esses testes apto a promover rituais e curas. Porém, não conseguimos acessar uma transcrição mais detalhada deste documento, sendo esta citação retirada de uma nota de rodapé.


Quem sabe, habilitados por essas provas extenuantes e dominando capacidades xamânicas, os aprendizes podiam considerar-se mestres e sair pelas fazendas e vilas oferecendo os seus préstimos, curando pessoas, animais e bens? Ao que parece, se mestres da jurema eram formados nas matas da Ibiapaba eles não tinham dificuldade para encontrar um campo de atuação na vizinha ribeira do Acaraú, onde a florescente Vila de Sobral oferecia vasta clientela, assim como a Vila da Mocha, no Piauí. Os moradores brancos da ribeira do Acaraú e da serra da Meruoca demandavam tanto os serviços espirituais que no ano de 1779 três curas e feiticeiros foram denunciados de uma só vez ao Santo Ofício por um morador da ribeira, além de 25 outras pessoas, seus seguidores. Entre as práticas denunciadas estavam “defumadores”, “bebidas da Jurema”, “danças e cantos” com a finalidade de curar doenças e fechar o corpo contra chumbo. (Vieira Jr. 2011, p. 784 e 797).


Outras duas denúncias ao Santo Ofício foram feitas nesta mesma época, uma na Vila de Índios do Conde (Paraíba) e outra no lugar Camaleão, próximo a Una e Serinhaém em Pernambuco. Muito provavelmente nas imediações da povoação de Índios de São Miguel de Barreiros. Estes dois aldeamentos com grande concentração de índios de Língua Geral (Lopes, 2005; Wadsworth, 2013).


Terror e cura nos sertões.


A maioria dos registros produzidos no século XVIII revela uma preocupação constante das pessoas que usavam a jurema como rituais de cura e de proteção. Os rituais com a jurema tem assim um paralelo com a descrição etnográfica que Michael Taussig (1987) faz dos rituais com Yagé na Colômbia. A organização dessas práticas coletivas orientadas por mestres na administração da planta enteógena em contextos de interação colonial onde a busca por riquezas e a agressão são componentes cotidianos atua como elemento organizador e estabilizador de crises pessoais ou coletivas, modos de aprender a operar com potências sociocosmológicas antagônicas. O que permite a pessoas e grupos desenvolverem meios a habilidades para sua defesa e contra-ataque num mundo marcado pela violência.


O teor de muitas das denúncias e confissões aos agentes do Santo Ofício nos apontam claramente esses objetivos. Os casos do Payaku Gaudêncio (Cruz, 2019), o dos curas caboclos da Ribeira do Acaraú e Serra da Meruoca (Vieira Jr, 2011) e o da própria Pedra Bonita (Grünewald, 2020) nos mostram muito claramente a preocupação em agir num mundo marcado pela violência, agressão e morte. Muitas vezes atacando preventivamente os desafetos ou adquirindo dons como corpo fechado. Este uma verdadeira obsessão nos sertões coloniais (Souza, 1986; Vieira Jr, 2011; Cruz, 2019).


Adentrando o século XIX, o trágico evento da Pedra Bonita (1836-38) levou ao extremo a expectativa de agir nesse mundo. Uma comunidade inteira se formou tentando desencantar o Reino Encantado a partir de sacrifícios de sangue de modo a inverter a ordem desigual estabelecida. Negros voltariam brancos; velhos, jovens; pobres, ricos. Liderado por um mameluco e mobilizando famílias de pequenos agricultores e trabalhadores das fazendas – índios, negros, mestiços e brancos – o culto na Pedra Bonita apontava para uma transformação radical do mundo. Atuando sobre profundas expectativas culturais e religiosas, terminou desaparecendo numa espiral de violência. Infelizmente, da Pedra Bonita só temos registros das forças que castigaram o movimento e este é pintado com as cores mais tenebrosas. Como se fosse uma explosão de violência irracional de fanáticos (Grünewald, 2020).


Porém, se atentarmos para o período histórico do qual faz parte o massacre da Pedra Bonita a violência, as revoltas e os morticínios eram a linguagem corriqueira do poder instituído. Instrumento através do qual a sociedade se organizava. Aqueles sertões haviam sido fortemente conflagrados durante as primeiras décadas do século XIX, com a Revolução Pernambucana de 1817, a Independência do Brasil (1822), a Confederação do Equador (1824) e a Revolta de Pinto Madeira (1832). Além disso, a Pedra Bonita ficava exatamente no centro geográfico da área de refúgio dos últimos grupos Umã, Xocó e Pipipã que eram sistematicamente aldeados e repelidos nas missões da Serra Negra, Serra Umã e Baixa Verde entre os sertões do Pajeú, Piancó e Cariri (Santos Jr., 2015, p. 125-126; Medeiros e Mutzenberg, 2022).


Fotografia colorida de um pequeno altar, uma bancada de concreto, com a com uma estatueta de padre Cícero, medindo cerca de 20 cm ao lado de Frei Damião, duas estatuetas menores, de Nossa Senhora e de Jesus, um porta retrato em forma de capelinha com a foto de Nossa Senhora com o menino Jesus, seis maracás de cabaça deitados, dois deles empilhados, três cachimbos tubulares de barro, um búzio, uma cumbuca de cerâmica cinza. À frente dos santos, uma cruz de madeira em pé, com um terço de contas miúdas envolto nela. À frente, uma fileira de cinco velas com a do meio acesa. Ao fundo, uma parede com a pintura amarronzada desgastada.
Foto: Altar de Jurema. Povo indígena Atikum. Serra Umã (Pernambuco). Nesta imagem podemos observar um altar contemporâneo dedicado ao culto da jurema entre o povo indígena Atikum. O altar encontra-se no interior de uma casa de gentio, uma construção de taipa dedicada às atividades rituais e que se localiza em meio à caatinga, um pouco afastada das residências. No altar observamos os elementos materiais utilizados no culto: maracás, cachimbos, imagens de santos católicos, velas, crucifixos, recipientes de louça onde é posta a bebida da jurema, entre outros objetos. Fotografia: Estêvão Palitot. 2007.



No início do século XIX a jurema já era amplamente conhecida e associada aos indígenas. Henry Koster, em 1816, diz que ouviu casualmente, conversando com pessoas das classes mais humildes da sociedade, que os indígenas continuam fiéis aos seus costumes entre eles o de praticar danças e rituais de forma discreta dentro de suas casas com o uso de maracás gravados e enfeitados, fumando em cachimbos e bebendo jurema. Essa bebida é feita com uma erva comum, mas nunca pude persuadir a um indígena para que me indicasse, e quando algum asseverava desconhecê-la positivamente, seu rosto desmentia as palavras (Koster, 1978, p. 396-397). Aires do Casal em 1817 menciona que os Xukuru de Cimbres na Serra do Ororobá tem fama de saber compor remedios, que fazem alienar o juízo. Em 1826, o diretor parcial do aldeamento da Palmeira, em Alagoas, descrevia o uso dos vinhos da jurema e da catingueira pela população aí reunida e originária de outros aldeamentos como Atalaia e Colégio em Alagoas e Urubá e Panema em Pernambuco (Antunes, 1984, p.40).


Tão conhecida era a jurema no século XIX que Dom João Marques Perdigão, Bispo de Pernambuco, em visita apostólica à cidade da Parahyba em 29 de dezembro de 1839, menciona sem muita surpresa que "N'esta cidade me disse um homem, que bebera jurema duas vezes para sua mulher sarar da moléstia da gota" (Perdigão, 1892, P. 194). Tal qual um adultério ou outro "pecado" corriqueiro a jurema foi registrada pelo Bispo sem que eles se preocupasse em detalhar melhor o que poderia ser essa bebida.


Desde a primeira denúncia sobre a jurema em 1739 até o registro trivial do Bispo de Pernambuco em 1839 passaram-se cem anos. Nosso mapa registra as informações desse "primeiro século" dos usos rituais da planta e bebida. Identificamos claramente a origem e precedência indígena dos rituais com a jurema, assim como a repressão sistemática das autoridades civis e religiosas. Da mesma forma a jurema também aparece como um potente canal de trocas culturais no mundo colonial, articulando pessoas e grupos sociais distintos em um multifacetado e complexo universo de interações e conflitos.


Após 1839, e até os dias de hoje, a jurema continua presente nos mundos indígenas e para além deles, possibilitando trocas e comunicações entre humanos e seres encantados. Curando e protegendo, mas também auxiliando no registro, transmissão e recuperação de memórias. Através da jurema, os povos indígenas (e outros povos) produzem continuamente seus mundos (i)materais. Agora um tanto mais livres da perseguição e repressão dos séculos anteriores. Os usos contemporâneos da jurema, porém, já são tema para outras postagens e mapas.


Documentários sobre a jurema:


  1. Índios do Sertão (Bahia Singular e Plural). TVE-Bahia. Ângela Luiza Machado, Guilherme Marback, Josias Pires (dir.). 2001.

  2. Jurema: Raízes Etéreas. Marcos Alexandre dos Santos Albuquerque (dir.). 2003.

  3. Uma ciência encantada. Chico Sales (dir.). 2010.

  4. Tiririca dos Crioulos - Um quilombo indígena. Larissa Isidoro e Lara Erendira (Dir.) 2014.

  5. Casa de Palha. Oswaldo Giovannini Jr. (dir.). 2020.


Referências:



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CRUZ, Carlos Henrique. (2019) A escola do diabo : indígenas e capuchinhos italianos nos sertões da América (1680-1761). Firenze: Firenze University Press, 2019. (Premio Istituto Sangalli per la storia religiosa; 7)


FREIRE, Gláucia de S. (2015). Encontros, diálogos e agências: circularidades culturais entre indígenas tarairiú e missionários na Paraíba setecentista. Campina Grande, EDUFCG.


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