Hosana Celi Oliveira e Santos[1]
Vânia Fialho [2]
O que faz um território constituir um universo sem limites de representação cartográfica?
As possibilidades humanas de leitura do mundo transbordam as fronteiras impostas à própria imaginação. E quando essa possibilidade de leitura se dá no coletivo, é possível trazer à tona um mapa que tem carne e sangue [3]. Mapa que tem vida e a vida de um povo. Eis o que define o mapa construído, no ano de 2012, pelo povo Xukuru do Ororubá [4] - O Mapa das Retomadas Xukurus -, e que integra o fascículo n. 1 da Série Direitos e Identidades do Projeto Nova Cartografia Social.
Mas o que leva um povo com tantas referências históricas e mapas já elaborados a fazer questão de elaborar mais um mapa?
Numa das mais importantes referências cartográficas que temos sobre a presença e diversidade indígena no Brasil, o Mapa Etnohistórico de Curt Nimuendaju ([1944] 1981), os Xukuru são situados entre os atuais estados de Pernambuco e da Paraíba no século XVIII. Contudo, mesmo diante da escassez de outras produções cartográficas, são muitos os registros sobre os Xukuru com referências de sua localização em diferentes momentos históricos.
Tal localização passa a ser mais precisa, já diante de um possível processo de regularização fundiária, com os relatórios do Serviço de Proteção ao Índio (1910 – 1969), da FUNAI – Fundação Nacional do Índio (1969-2023) e das iniciativas de variadas instituições que passam a atuar junto ao povo indígena Xukuru na passagem do século XX para o XXI. Situações geográficas, relevo, núcleos habitacionais, limites territoriais, ocupações não indígenas em território Xukuru e, até mesmo, as áreas geográficas obedecendo a classificação deste povo estão presentes num conjunto de mapas que poderiam ser organizados num atlas específico sobre os Xukuru.
Mas, voltemos às referências a documentos históricos apresentadas no Relatório de Identificação e Delimitação do Território Xukuru (1989) e também disponíveis no livro “As fronteiras do ser Xukuru” (FIALHO, 1998). Encontramos ali os Xukuru fartamente citados, como podemos ver a seguir.
No já referido mapa Etno-histórico elaborado por Curt Nimuendajú (1981), encontramos referências aos vários povos que ocupavam o território pernambucano em momentos históricos diferentes: no litoral, os Tobajaras (séc. XVI e XVII) e Caeté (séc. XVI); no interior, os Sukurú e Pratió (séc. XVIII); os Garanhum (séc. XVI); os Carapoto e Fulniô (séc. XVIII), próximos ao rio Ipanema; os Chocó, Pipipã, Umã e Vouvê (séc. XIX), entre os rios Moxotó e Pajeú; os Quesque (séc. XVII), margem direita do Pajeú; os Pankararú (séc. XVIII), os Procá, os Primenteiras (séc. XVII); os Dzubukua e Kariri (séc. XVII e XVIII); os Caripó (séc. XVIII) e os Tamaquim (séc. XVII e XVIII), na região do São Francisco.
Estêvão Pinto (1935), um dos estudiosos pioneiros na etnologia indígena no Nordeste, menciona os “Sukurus” que se encontravam nos rios do Meio, da Serra Branca, de São José e de Taperoá, todos tributários do Parnaíba, assim como nos afluentes do alto Piranhas, na serra do Arubá e em Cimbres (Pernambuco); os Garanhuns da Serra de igual nome; os Chocós, Vouvês, etc, que habitavam os Sertões da Serra Negra e as cabeceiras do Piancó; os Carnijós ou Fulniôs, de Águas Belas.
Especificamente sobre os Xukuru, existem várias outras referências que atestam sua presença no território pernambucano na região onde ainda hoje se encontram, como a do artigo do jornalista e historiador Moreno Brandão sobre a população de Alagoas:
Para o lado do ocidente (de Alagoas) tinham seu habitat, os Chururús, os Vouvês, os Unãs, os Pipianos e os Carapotós.... Os Chucurús, ou pela circunstância de morarem em pontos distanciados da comunicação como os europeus, ou por outros motivos quaesquer, persistiram mais ou menos extremes de mistura com outras raças, com as quais só lentamente se vão caldeando. (FREITAS, 1989).
Outros estudiosos foram mais precisos nas suas referências, como é o caso de uma carta datada de 12 de outubro de 1688, escrita por Matias da Cunha. Esta menciona os “Tapuios” (Tapuya) incluindo Paiacus, Icos, Caratius, Janduis e Sucurus, que encontraram as tropas sob o comando de Domingos Jorge Velho e Matias Cardoso. Esses indígenas estão admiravelmente descritos como estando entre os ‘aborígenes’ de região nunca completamente conquistada pelos brancos (HOHENTHAL, 1958, p. 99).
De acordo com Hohenthal, pesquisador americano que produziu valioso trabalho sobre os indígenas no Nordeste por volta da década de 1950, a mais antiga menção sobre os Xukuru, na versão Xukurru, é de aproximadamente 1599, se acreditarmos no autor de Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco, escrito em 1757 no Recife (HOHENTHAL, 1958, p. 99).
Fazendo menção aos embates entre os diversos povos indígenas que habitavam a região para a qual estamos voltados nesse texto, Barbalho (1977), que muito escreveu sobre a história de municípios pernambucanos, responsabiliza os Xukuru pela expulsão dos indígenas Ararobá da Serra do Urubá. Os Xukuru formariam, segundo as palavras desse autor, a mais forte “tribo de tapuias cariris” que ali decidem ficar vivendo. Estes, que são recordados sob várias formas nominais como: Chiquiris, Chucuru(s), Shucuru, Sucuru (s/z), Xacuru, Xukuru, Xukuru (s/z), Xukururu, “habitavam toda a serra dos antigos Ararobás e em seus contrafortes – Serras do Jardim, Pitó, Gavião, Varas, etc – mais outra tribo cariri espalhava-se sem vontade de abandonar o oásis – a dos Paratiós” (BARBALHO, 1977, p. 46).
A colonização dessa área teve como centro a Vila de Cimbres. O local teve, no início, a denominação de aldeia do Ararobá, depois tomou nome, dado pelos jesuítas, de Monte Alegre e, ao ser criada a vila em 1761, recebe o nome de Cimbres, recordando um povoado em Portugal, passando a ser administrada pela Câmara Municipal.
Complementando as informações referentes ao século XIX, muitos documentos informam sobre a administração do aldeamento de Cimbres. Um deles, datado de 1879, trata da denúncia feita pela representação daqueles indígenas, de que o diretor local estava arrendando terras da aldeia quando eles haviam se retirado em consequência da seca (FREITAS, 1989).
A demarcação das terras do aldeamento era constantemente requisitada pelos indígenas, na oportunidade das denúncias de posseiros e arrendamento da área. Pelo visto, porém, a demarcação do território Xukuru não foi realizada, como consta no Relatório de pesquisa do Aldeamento da Vila de Cimbres (FREITAS, 1989), com base em documentos do Arquivo Público Estadual de Pernambuco:
Em 1879 foi indeferida uma predita do agrimensor Carlos Camillo Coutim sobre as terras de Cimbres. Também uma proposta de demarcação deste aldeamento de 1885 foi adiada, por motivo de não constar verbas específicas para o caso na lei dos orçamentos. O requerimento do índio Luciano em 1888, solicitando que lhe fosse entregue, e também aos demais índios de Cimbres, as terras do aldeamento de Urubá, vem demonstrar mais uma vez, o agravamento da situação desses indígenas, que apesar de toda a pressão, resistiram e permaneceram na região em pequenos espaços, cercados por fazendas, que não lhes permitem condições para sua sobrevivência.
Anos e anos de muita luta e resistência e foi só em 16 de maio de 1989 que pode ser identificada uma importante medida na direção do reconhecimento dos direitos territoriais dos Xukuru. Foi emitido o termo de comodato feito pelo Ministério da Agricultura de área ocupada por não indígenas para benefício dos indígenas. Entretanto, “a FUNAI não tomou nenhuma providência para a retirada dos posseiros, levando os índios a providenciarem a retomada da terra pelas próprias mãos” (OLIVEIRA, 2006, p.200).
Foi então que, no final do ano de 1990, os Xukuru realizaram a sua primeira “retomada” se instalando no centro da mata de Pedra d’Água. (SANTOS, 2009, p.65), área referente ao termo de comodato citado acima. Tais retomadas constituem ações políticas com relação à ocupação de seu território, que envolvem mobilização coletiva de mulheres e homens indígenas e seus contextos étnicos, propiciando mudanças substanciais do projeto de vida de um povo, ao ocupar, antecipadamente a qualquer ação administrativa ou judicial, área do seu território tradicional que se encontra em litígio.
São formas estratégicas de mobilizações políticas entre os Xukuru, não só como estratégia de eventos passados, mas que ainda constituem um meio recorrente e que faz parte de um modelo de ação política que tem relação direta com o processo de territorialização, apresentando uma profunda interface com o processo de elaboração cultural e do ethos Xukuru. (SANTOS, 2009, p.29)
Contar a história ou até mesmo elaborar mapas a partir dos embates e investidas não indígenas mencionados nos registros históricos, que nos situam também geograficamente e que caracterizam o processo das várias Retomadas dos Xukuru, tem grande importância, permitindo visualizar as dinâmicas territoriais em contexto colonial.
Com tantas informações sobre os vários aspectos históricos, geográficos e sua localização, cabe atentar que foi exatamente sobre as Retomadas que os Xukuru tanto se empenharam para produzir mais um mapa.
É a partir da constatação de que a existência dos Xukuru na contemporaneidade se deu e se dá com base nas suas próprias forças de resistência, que chegamos ao Fascículo e ao Mapa das Retomadas Xukuru (2012), esse que, a partir de agora, passa a ser o foco de nossa atenção.
Do final do século XIX, período ao qual nos referimos parágrafos acima, até 2012, ano de publicação do mapa das retomadas, há uma período que precisa ser desvelado. Trata-se de períodos entre apagamentos, silêncios e negações da existência dos povos indígenas e aqui destacamos o povo Xukuru do Ororubá.
História que apresenta uma torção no seu curso com os movimentos de emergência e afirmação étnica que coincidem com a promulgação da Constituição de 1988, a organização de movimentos indígenas institucionalizados, com as retomadas de terras (SANTOS, 2009) que ocorreram desde o cacicado de Xicão Xukuru até 2012, sob o cacicado de Marcos Xukuru. Trata-se de uma linha do tempo que possibilita não apenas visualizar um contínuo das ações do povo Xukuru para reaver seu território, mas também demarca a potência das ações mobilizadas pela concepção de um sujeito coletivo de direito, suas dinâmicas sociais e territoriais que historicamente marcaram o estabelecimento dos Xukuru nessa região, suas histórias de lutas e resistências que são vivenciadas e marcadas pelos próprios Xukuru.
Tais dinâmicas são evidenciadas e apontadas por esse povo, a partir das retomadas e de aspectos de sua vida que aparecem e dão consistência ao Fascículo e ao Mapa das Retomadas Xukurus (2012).
Os pontos localizados no mapa assinalam movimentos, alguns históricos, como a localização dos parentes indígenas que moram fora do território demarcado, mas que registram que os limites oficialmente definidos não dão conta da fluidez das dinâmicas sociais, políticas e territoriais. Outros pontos marcados no mapa também indicam tipos de movimentos e dinâmicas, como as práticas ritualísticas e seus circuitos, que atualizam o senso de coletividade e de partilha de elementos simbólicos importantes da cosmologia Xukuru; terreiros, a caminhada para a Vila de Cimbres, a busca da lenha na noite de São João; a emboscada, os conflitos, as retomadas, entre elas a retomada das escolas e os movimentos políticos, como a primeira reunião de professores indígenas.
[O fascículo] tem muito a contribuir com o fortalecimento da identidade Xukuru, pois possibilita uma divulgação interna e externa da história Xukuru, reforçando assim a identidade étnica do nosso povo. Percebi que o fascículo seria para nós um material importante a ser trabalhado nas escolas. Ele teria o registro da história Xukuru pela ótica dos mais velhos o que contribuiria para fortalecer o projeto de futuro do povo Xukuru.(Marcos Xukuru). (PNCSA, 2012, p. 4)
Os Xukuru vão, no mapa, mostrando e enfatizando a vida, a luta, a resistência e suas dinâmicas. Vão destacando que o que se revela, no mapa e no fascículo, são os aspectos de suas vidas que geralmente não aparecem em outros mapas. O mapa, enquanto exercício vivido coletivamente por integrantes desse povo nas oficinas do Projeto Nova Cartografia Social, constitui relevante processo de reavivamento da memória coletiva e de recuperação da história de luta do povo Xukuru do Ororubá,.
Essa é uma história que não pode ser esquecida. Ela precisa ser contada nas escolas para os mais jovens que precisam continuar essa luta. O fascículo passa a ser um instrumento pedagógico, onde podemos contar a nossa história, do nosso jeito, a partir do nosso olhar! (Valdenice). (PNCSA, 2012, p. 11)
Nesse universo sem limites de representação cartográfica, o fascículo e o mapa foram pensados pelos Xukuru com a finalidade de servir como instrumento de luta, como material pedagógico-educativo e de fortalecimento da identidade dessa etnia. Um universo vivo e pulsante. Contudo, até mesmo esses objetivos com o passar do tempo foram se desdobrando e se revelando também como um material potente de apoio jurídico nacional e internacional. Mas isso é tema para uma outra explanação!
Referências:
BARBALHO, Nelson. Caboclos do Urubá. Biblioteca Pernambucana de História Municipal. Companhia Editora de Pernambuco, s/d.
FIALHO, Vânia. As fronteiras do ser Xukuru. Recife: Massangana, 1989.
FREITAS, Ednaldo Bezerras de Freitas. Relatório sobre pesquisa do Aldeamento de Cimbres, 1989. Parte integrante do Relatório de Identificação e Delimitação da Al Xukuru/Pesqueira-PE. Recife, SID/DFU/3ªSUER. 1 set 1989. Arquivo FUNAI/ Recife.
HOHENTHAL, W. D. Notes of the Shucurú indians of Serra de Ararobá, Pernambuco, Brasil Revista do Museu Paulista, 8:91-166, 1958.
NIMUENDAJÚ, Curt. Mapa Etno-histórico. Rio de Janeiro: IBGE, 1981.
OLIVEIRA, Kelly Emanuelly de. Guerreiros do Ororubá. O processo de organização política e elaboração simbólica do povo indígena Xukuru. 2006. Dissertação de Mestrado em Sociologia - Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa.
PINTO, Estevão. Os indígenas do nordeste. São Paulo: Nacional, 1983.
PROJETO NOVA CARTOGRAFIA SOCIAL DA AMAZÔNIA - PNCSA. NOVA CARTOGRAFIA SOCIAL DOS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS DO BRASIL: Xukuru do Ororubá - PE. Fascículo n. 1, Série Diretos e Identidades. Manaus: UEA Edições, 2012.
SANTOS, Hosana Celi Oliveira. Dinâmicas sociais e estratégias territoriais: a organização social Xukuru no processo de retomada. 2009. Dissertação de Mestrado em Antropologia – Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife.
NOTAS:
[1] Doutora em Antropologia, integrante do Projeto Nova Cartografia Social - Núcleo Pernambuco.
[2] Doutora em Sociologia, Professora aposentada da UPE e professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPE, integrante do Projeto Nova Cartografia Social - Núcleo Pernambuco.
[3] Segundo um dos fundadores da Antropologia Social, Bronislaw Malinowski (1984), a expressão “carne” e “sangue” é utilizada para ressaltar a necessidade de ir além dos dados per se e, aqui, ressaltamos a importância de contemplar o campo do intangível, das sensações, das emoções, da atribuição de sentidos colocados no mapa naquilo que é nele registrado, de forma a apreender o fluxo da vida de determinado grupo social, aquilo que o etnógrafo chama de “imponderáveis da vida real”.
[4] O povo Xukuru do Ororubá está situado entre os municípios de Pesqueira e Poção, no agreste do estado de Pernambuco, e possui uma população de 8.145 indígenas situada da Terra Indígena e cerca de 1.535 Xukuru vivendo na cidade de Pesqueira, de acordo com os dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI - 2022). Seu território demarcado abrange uma área de 27.980 ha e coincide com a Serra do Ororubá, onde estão distribuídas suas 24 aldeias.
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