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  • Foto do escritorEstêvão Palitot

1628 | O PRIMEIRO MAPA INDÍGENA DO BRASIL?

Atualizado: 5 de fev. de 2023

A partir do relato sobre a costa entre Pernambuco e o rio Camocim, proferido por seis indígenas Potiguara ao holandês Kilian de Resenlaer, traçamos o que talvez seja o primeiro mapa de autoria indígena do que viria a ser Brasil




Pintura de Albert Eckhout representando um indígena de pé, de perfil para a esquerda com o pé esquerdo à frente do direito. Na mão direita, segura uma flecha com a ponta para baixo, na esquerda segura um arco grande e quatro flexas. Ele olha em nossa direção e usa um calção frouxo, branco, com um facão enfiado no cós. Ele tem os cabelos ondulados um pouco abaixo da orelha. Ele está no alto de um barranco. A linha do horizonte está na altura do joelho dele. O céu está nublado, lá embaixo um rio margeado de vegetação. Logo atrás dele, pés de mandioca e ao lado do pé, em primeiro plano à direita, duas raízes grandes.
Homem Brasiliano, 1643 Albert Eckhout. Na imagem, Homem Brasiliano, de Albert Eckout, o pintor retrata um indígena brasiliano (tupi, potiguara). A mais famosa feita no período holandês. Ele representa um indígena em pose europeia, vestindo um calção, descalço e sem camisa. Olha diretamente para o espectador e segura, em suas mãos, arco e flechas em posição de repouso e uma faca na cintura. Ao lado dele, está um pé de mandioca, com sua raiz cortada e exposta. Ao fundo, um rio onde outros indígenas realizam atividades diversas. Também aparece um caranguejo guaiamum no canto inferior. A imagem aborda os temas da guerra, da produção de alimentos, dos contatos interculturais e da possibilidade de “civilização” desses indígenas a partir do ponto de vista dos holandeses.

Mal acabava o inverno na fria e úmida cidade de Amsterdam naquele dia 20 de março de 1628 e seis brasilianos, indígenas tupis, encontraram-se com o senhor Kilian de Resenlaer para lhe dar uma declaração sobre a costa nordeste do Brasil. Caspar Paraoupaba, Andreus Francisco, Pieter Poty, Antony Guirawassauay, Antony Francisco e Lauys Caspar, ficaram frente à frente com o notário holandês que registrou atentamente todas as informações que eles diziam a respeito da costa do Brasil entre Pernambuco e o rio Camocim.


Não deve ter sido fácil para a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais ocultar de olhos curiosos a presença de grupo tão singular. Eram seis brasilianos que estavam há quase três anos na cidade de Amsterdã, vindos do Ceará e da Baía da Traição, os indígenas aprendiam e ensinavam junto com marinheiros e cartógrafos holandeses. Uma experiência única de trocas culturais que representou a chave para a compreensão de uma época intensa de conflitos e transformações.


O aprendizado linguístico e cultural mútuo tinha um objetivo claro, prover a Companhia de informações exatas e qualificadas sobre a costa do Brasil: seus portos, as riquezas do interior, os estabelecimentos coloniais portugueses e suas defesas e o ânimo dos indígenas com relação aos colonizadores. Uma invasão em larga escala estava sendo planejada e os fracassos da ocupação da Bahia serviram de lição. Para conquistar a terra era preciso garantir a aliança dos indígenas, ou pelo menos sua neutralidade.


Foi com essa preocupação que surgiu um dos documentos mais interessantes sobre o Brasil. Talvez o primeiro registro do conhecimento cartográfico indígena sobre as terras que habitavam. Poderíamos dizer, sem muito medo de errar, que este foi o primeiro mapa indígena do Brasil. Mesmo que não tenha sido um mapa propriamente desenhado, mas apenas uma descrição, ela supria a curiosidade e as lacunas da cartografia que os holandeses vinham reunindo avidamente. Este relato chegou até os dias de hoje na forma de dois registros manuscritos: o primeiro traduzido para o francês em 1907 e o segundo para o português em 2007. Surpreende que nesses cem anos de intervalo não se tenha tentado georreferenciar a descrição fornecida pelos indígenas.


O relato dos brasilianos é detalhado e preciso o suficiente para que possamos nos aventurar a fazer a geolocalização dos pontos que eles descrevem. Para tanto utilizamos o Google Earth Pro, os trabalhos de Levy Pereira (2017), Luís da Câmara Cascudo (1941) e Olavo de Medeiros Filho (1998), a cartografia histórica da época, bem como o suporte da cartografia básica em raster fornecido pelo Ministério do Meio Ambiente e dos mapas municipais do IBGE.



Nota sobre o mapa: dividimos o mapa/relato dos indígenas em oito camadas que indicam os tipos de lugares que foram enumerados pelos mesmos. São elas: alguns [1] marcos geográficos; enumeração de uma grande quantidade de [2] povos indígenas da região; há também a indicação de lugares do mundo colonial, temos desde locais de empreendimentos econômicos extrativistas, como extração de [3] madeira, [4] salinas e [5] possíveis minas; até infraestrutura dos [6] núcleos coloniais, [7] engenhos e [8] currais.
Como navegar: Ao passar o cursor por cima dos pontos do mapa é possível conferir os trechos do documento referente a cada um deles. Para instruções de como explorar essa ferramenta clique aqui.

Trazer ao formato de cartografia digital a Descrição da Costa do Brasil entre Pernambuco e o rio Camocim, realizada pelos indígenas tupis do século XVII, é a oportunidade de abrirmos uma janela para um dos períodos mais intensos da história indígena, do Brasil e do mundo atlântico. As seis décadas entre 1600 e 1660 testemunharam a continuidade e a ampliação dos embates entre os mundos indígenas e coloniais. Pernambuco era um dos nexos fundamentais desses processos, por onde passavam decisões, mercadorias e pessoas. Eixo irradiador de expedições militares, a capitania foi também, ela mesma, alvo central das guerras que envolviam o monopólio da exploração do açúcar, do pau-brasil e da imensa rede escravagista que atravessava o oceano.


Nesse período os indígenas desempenharam papel fundamental em praticamente todos os cenários possíveis, principalmente naqueles das guerras. Mesmo após décadas de massacres, epidemias e subjugação, a população indígena ainda era significativa, com ares de independência e insubmissão. Seus líderes eram habilidosos tanto na guerra, quanto na política. Manipulavam códigos culturais diversificados e viajavam entre os continentes fazendo apostas altas e arriscadas. Tendo esperança de, ao apoiar o lado vitorioso, conquistar espaços e garantias para os grupos que lideravam. Seus atos foram inscritos tanto nas crônicas coloniais, quanto em sua própria língua, um fato raro em outros momentos históricos.


Tupis e tapuias lutaram, falaram e escreveram, deixando uma marca poderosa nos tempos turbulentos em que viveram, alimentando lendas e histórias que ecoam até os dias de hoje. Este mapa busca apresentar um pouco desse mundo intenso e violento, de rápidas mudanças, venturas e desventuras.


O RELATO DOS BRASILIANOS:


Descrição[1] da costa do noroeste de brasil entre Pernambuco e Rio Camocipe, do relatório dos brasilianos seguintes: Gaspar Paraupaba do Ceará, da idade de 60; Andrês Francisco do Ceará, da idade de 50 anos; Antônio Paraupaba[2] de Tabussuram, que fica na distância de 2 dias no interior da Paraíba, da idade 30 anos; Pedro Poti, da idade de 20 anos


De Olinda terra adentro fica Paratihu[3], onde há engenhos.

Três léguas além, um rio, Igaraçu; além dele a ilha de Itamaracá.

Seis léguas além, o rio Goiana.

Os brasilianos desta zona são tabajaras, amigos dos portugueses.

Doze léguas além de Goiana o rio Paraíba. Algumas léguas daqui haveria uma mina de prata, mas eles nunca viram-na; o lugar chama-se Tuiuba.

Nesse rio há uma fortaleza construída da madeira e depois tapada com argila e palha para maior força. A cidade da Paraíba fica três léguas desta fortaleza, rio adentro. Uma vez que os brasilianos entre este lugar e o Rio Grande são petivares, subjugados pelos portugueses e, portanto, inimigos dos potiguares – a nação dos nossos brasilianos – eles não conhecem tão bem a situação desse lugar como os outros onde eles tinham acesso livre. Estes brasilianos são potiguares, agora amigos dos portugueses, e antes dos franceses.

Seis léguas ao norte da Paraíba corre o rio Miriri[4]. Três léguas rio adentro há um engenho de açúcar. Na vizinhança não mora outra gente senão a do engenho, o qual está a seis léguas da Paraíba. Três léguas da Paraíba e seis léguas da boca do rio Miriri apanha-se boa quantidade de pau-brasil, que eles chamam “uwaripitan”.

Duas léguas ao norte do Miriri corre um rio Mamanguape. Aqui há moradores portugueses que trazem manteiga e queijo ao mercado da Paraíba. Têm muito gado e produzem muito tabaco.

A meia légua de Mamanguape está a Baía da Traição, onde o general Balduíno Hendricksz passou algum tempo, e onde os brasilianos – potiguares – o visitaram. Deles, oito foram mandados à Câmara de Amsterdã e cinco à Câmara de Groninga, onde aprenderam a ler e a escrever por ordem da Câmara de Amsterdã. Os três mais velhos de entre eles: Gaspar Paraupaba, Andrés Francisco e Luiz Gaspar[5] saíram de Cabo Verde[6] no iate Bruinvis em 17 de fevereiro de 1630, etc.

Uma légua da Baía da Traição há um pequeno rio para chalupas, chamado Camaratuba[7]. Três léguas rio acima há um engenho de açúcar, que queimaram quando lá esteve o general Balduíno Hendricksz, e que aparentemente foi reedificado. Aqui não mora outra gente senão a do engenho.

Quatro léguas além, de Camaratuba encontra-se uma grande aldeia chamada Tabussuram, onde moram os tiguares, sob o comando de seu cacique Jaguarari. Pelo que tinha favorecido a Balduíno Hendricksz, ele fugiu aos tapuias, mas voltaria se tivesse ocasião.

Seis léguas além de Camaratuba segue a Baía Formosa, chamada Quartapicaba, onde há boa água na praia. Aproximadamente a uma hora da praia encontra-se quantidade de pau-brasil, que os franceses soíam procurar antes que lhes fosse impedido pelos portugueses. É possível ir e voltar três a quatro vezes num só dia entre o pau-brasil e a baía. Esta baía tem uma montanha grande e alta, de modo que se aconselha trazer o pau-brasil do lado de Camaratuba ou do lado de Curimataú – onde leva um bom caminho embora flanqueado de árvores – e chegado a ela deitá-lo da dita montanha abaixo – ela é bastante íngreme – e trazê-lo aos navios em barcos. Os navios deveriam ficar afastados um tiro de peça de ferro fundido da terra. Este lugar é importante, mas enquanto não somos donos da Paraíba ou do Rio Grande do Norte deveríamos procura-lo com maior número de gente, porque precisaríamos de pessoas para garantir a passagem entre o mato e baía.

A uma légua da Baía Formosa segue um rio para iates, chamado Curimataú, que tem engenho de açúcar três léguas rio adentro. Os iates não chegam tão longe, e deve continuar-se navegando uma légua em chalupas.

Quatro léguas de Curimataú há um ancoradouro chamado Pernambuco ou Guiraire. Meia légua terra adentro está Guayana, onde moram pescadores.

A três léguas de Guiraire está o riacho Tareyrick, onde há pau- amarelo, chamado Tatayouba; também ferro, que chamam de ita, há a duas léguas no interior. A uma légua de Tareyrick encontra-se um riacho de água fresca onde não moram portugueses, chamado Pirangi ou Porto e Búzios.

Aqui, perto do mar, há pau-brasil. Lá mora um francês que pesca para os portugueses. E aqui não há montanhas, de maneira que seria fácil obter o pau, e dista apenas cinco léguas do Rio Grande.

A cinco léguas de Pirangi há um grande rio: Rio Grande, e em brasiliano chama-se Potengi,[8] onde na entrada a beira do rio e do lado de Pirangi está uma fortaleza construída de pedra com uma guarnição de 40 soldados e 9 peças de metal. Mas, segundo o piloto que esteve preso na Paraíba durante 33 meses,[9] conta com 80 soldados e 29 peças. É preciso conquistar este lugar. Com os navios é possível chegar-se bem perto do castelo.

A muralha está fundada no chão e a artilharia fica tão alta que será possível postar-se abaixo dela para demolir a muralha; o inimigo não poderia fazer mais dano que atirar pedras. A porta da fortaleza deve ser escalada por meio de uma escada. Perto dela há uma aldeia de oito casas de portugueses, além da igreja. Também há aqui um engenho de açúcar, com cinco portugueses e alguns negros. Aqui há muito gado por causa das boas pastagens. Lá cultivam muito gengibre, que chamam mangaratay.

Estes brasilianos julgam que é possível conquistar Rio Grande com seis a oito navios e iates, uma vez que os portugueses não contam com amigos entre os brasilianos mais ao norte; cujo brasilianos de várias regiões logo se associaram conosco: a saber duas espécies de tapuias com muita gente e de grande estatura. Eles lutam com dardos sem arco, e moram em Yguasu, Guararick e vizinhança. Também os jandouys, que também lutam com dardos manuais, os quais vivem detrás dos tapuias no interior; os lugares deles se chamam Ytsyoso, Pinodua, Ariguanrick etc. E note-se que em Araguanuch se encontra a pedra azul que chamam Ytawuh[10], da qual eles fazem contas; e nós pensamos que se trata do acori[11], cujo peso pagam em ouro na costa da Guiné.

Estando no rio Guararuick, ou em Carwaretame nas salinas, seria, com a ajuda dos tapuias, muito fácil chegar a Ariaguanrick. Detrás dos jandouys vivem as nações carakera, em Guraringuta, Craray-Wipay, Tatinguta e outros lugares. Mais longe viviam os icareguasu. Depois os sumbararou em Wratingeta, Opposa e outros lugares, na distância de dez dias da Baía da Traição, mas em nenhum lugar em menos da metade do Rio Grande.

Os Tiguares – que em rigor são a nação dos nossos índios – vivem em lugares diversos e afastados uns dos outros; a saber detrás da Baía da Traição em Copaoba, Cualsaguasu, Guirangire, Guirapesem, Ucanieme, Mouresitou, Yarerough e Ceará. Eles lutam com arco-e-flechas, e nota-se que os tiguares e os tabajares[12] são cristãos e que sabem rezar; alguns deles podem escrever; mas as outras nações não. Também dizem que nos matos vivem muitos negros da Guiné e de Angola – antigos escravos que fugiram dos portugueses – em grandes quantidades; os quais, vendo a ocasião, atacariam os portugueses, e são grandes inimigos deles; e eles pesam que poderiam movê-los logo socorrer-nos.

Em consequência de tudo isso, a companhia deveria, sem perda de tempo, assegurar-se dos ditos lugares, uma vez que ela então, até o Maranhão, não teria inimigos às costas, e todos os brasilianos se converteriam em amigos dela. Dos quais não só teria assistência em ganhar o Rio Grande – cuja fortaleza é um obstáculo a esses povos –, mas também receberia deles muitos refrescos, pescado, carne, farinha, milho, feijão e muitos víveres mais, por preços baixos. Também pode-se fazer bons negócios com eles de pimenta Brasil (cugunga), algodão (amonyioug), óleo balsâmico (uwyraca-andugh) – que se obtém da árvore copaíba –, pau mosqueado (uquiraqua-tuyara), pau de tinta preta (uwyagugk), favas turcas (comanda), nitrato (tatacowich)[13], e prata (itaiouba). E mais pau-brasil, gengibre, pedra azul, tabaco, pau-amarelo, como também âmbar gris e mais alguns gêneros que tem no seu país.

Além de que estas nações – e sobretudo os potiguares que vivem detrás da Baía da Traição – gostariam muito de ajudar-nos a combater os portugueses no interior da Paraíba e de Pernambuco, pelo que lhes infligiríamos o maior prejuízo: eles não têm inconveniente em marchar umas cem léguas contra seus inimigos, tendo os do Ceará – na presença do nosso Gaspar – combatido os portugueses até o rio Camusipe – onde lhe feriram a panturrilha que ainda está com a bala nela – a uma distância de mais de 50 léguas de lá; como também nos tempos do Balduíno Hendricksz do Ceará à Baía da Traição, que são mais de 100 léguas.

Devem portanto o quanto antes – porque se aproxima a monção do norte com a qual é fácil de voltar – mandar dez a doze navios medianos e iates, tripulados com 600, 800 a novecentos soldados e 300 a quatrocentos marinheiros ou quantos podem sem problema dispensar durante algum tempo – ao Rio Grande sob experimentados comandantes para atacar seu castelo e conquista-lo com a ajuda de Deus. E quando este lugar resulta estar mais forte ou melhor guarnecido do que pensamos, devemos atacá-lo por meio de trincheiras e tratar de convencer os brasilianos acima mencionados a que nos assistam; também mandar a essa campanha os nossos acima mencionados brasilianos. Esta gente deve ser provida de víveres para 3 a 4 meses, e também – por princípio – algumas carregações[14] para comprar mais vitualhas e estabelecer o negócio; e não duvidamos que eles contenham boa quantidade de farinha, ervilhas, feijão, e outras vitualhas dos selvagens para mandar a Pernambuco. Logo depois da realização dessa tarefa devem tratar de ocupar os quatros engenhos de açúcar que se encontram a norte da Paraíba – que apenas são defendidos – ou tratar de negociar com eles para trocar nossas mercadorias pelos açucares deles, e dessa forma começar a estabelecer o negócio. Também o pau-brasil pode ser cortado lá em grandes quantidades e sem perigo, principalmente o de Piranga, que fica a pouca distância.

Estes navios devem ter ordem para, quando possível, comunicar suas façanhas a Pernambuco. E depois de terminar suas tarefas no Rio Grande devem deixar uma guarnição adequada na fortaleza, fortificá-la contra as violências, aprovisioná-las de todo o necessário; expulsar ou evacuar os moradores portugueses, menos os de engenho de açúcar.

Seguidamente – se os brasilianos mostrarem vontade de marchar por terra com a nossa gente em quantidades para Paraíba ou Pernambuco, e quando conhecem bem o caminho – deve se considerar-se a conveniência de acrescentar alguns soldados armados à tropa, para marcharem dessa forma aí, e também levar conosco todos os capazes de andar, para aumentar a chance de conquistarmos os lugares que os portugueses possuem no caminho. E inventar meios de informar-nos da sua chegada, para que lhes possamos mandar reforços de Pernambuco. Também mandar dois iates do Rio Grande ao sul a Pernambuco, e igualmente dois iates ao Maranhão, que entrem em todos os rios, baías e riachos para comunicar a nossa vitória aos brasilianos. Entretanto, tratar de fechar alianças com eles, estabelecer negócios, obter vitualhas e investigar tudo o que lá se passa: tal como vem descrito aqui de lugar a lugar, acrescentando todo o esquecido. No caso de os iates mandados ao norte não poderem voltar, devem seguir por toda a Costa Selvagem[15] e voltar à pátria pelas Índias Ocidentais.

Duas léguas além do Rio Grande há um riacho chamado Ceará[16], tratando-se de outro Ceará do que o donde vêm os nossos selvagens.

Uma légua além está o riacho Piracabuba, onde não moram portugueses. E note-se que a partir daqui até o Maranhão já não vivem portugueses, a não ser no Ceará, como depois se dirá.

Duas léguas além, segue-se Pecutinga, com boa baía, ancoradouro e água fresca na praia.

Seis léguas além, há um riacho fresco que se chama Uguasu.

Dezoito léguas ou três dias de viagem além, há um ancoradouro que se chama Kaalsa.

Duas léguas além, Guamaré, sem água fresca.

A uma légua de Guamaré, encontra-se o rio Carwaretame, com pouca água fresca. Lá está uma salina com bastante sal fora de época das chuvas, que geralmente ocorrem em maio e junho. Aqui não mora ninguém, mas de vez em quando vêm portugueses.

Meia légua além, há um riacho chamado Barituba.

Uma légua além, há um rio para iates chamado Guaratahug. Entrando e subindo nesse rio com chalupas chegar-se-á a uma nação de tapuias inimiga dos portugueses – já amplamente mencionada acima – detrás da qual vivem os nhanduís. Neste rio, como também no Carwaretame, pode obter-se qualquer informação dos brasilianos, desde que haja um perito do idioma.

Meia légua além, há um riacho chamado Ugeguagewaryn.

Doze léguas ou dois dias de viagem além, há um riacho chamando Jandupatiba.

Meia légua além, está o rio Wypanem; nestes dois não vive gente.

Seis léguas ou um dia de viagem além: Awaranne.

Seis léguas além, está o rio Jaguari[17], com pouca água fresca. Meia légua além, há um riacho chamado Pariporie.

Uma légua além, há um riacho chamado Guatapugug.

Nesses três lugares acima mencionados, vivem brasilianos chamados japouahus, inimigos dos portugueses e dos tapuias.

Seis léguas além, está um riacho – com pouca água fresca – chamado Wichoro, sem gente; mas a pouca distância terra adentro mora a nação dos Kitariyouws, inimigos dos portugueses e dos tapuias.

Dois a três dias de viagem terra adentro há uma montanha chamada Alto de Wickoro, onde se acha tatawick - e eles não duvidam tratar-se de nitrato - o qual goteja da montanha abaixo em pedacinhos do tamanho de ervilhas, e duros como sal.

Seis léguas além, encontra-se Uguaguasu, sem gente e sem água fresca. Onze léguas além encontra-se a baía Mucuru, onde esteve João Baptista Sijens[18], que no seu diário escreve o seguinte a respeito dela:


Ano 1600, 21 de novembro, chegamos à rada de Mucuripe. Encontramos grande quantidade de selvagens, dos quais 19 principais vieram a bordo do nosso navio, trazendo algumas galinhas e fios de algodão. Ouvimos falar de uma mina de esmeraldas que lá deveria estar e muito âmbar gris. Fomos terra adentro e chegamos à sua cidade fortificada, onde encontramos como que 5.000 habitantes, que lá se tinham fixado por medo de seus inimigos. Manifestaram grande amizade: a casa se arruinou pela muita gente que queria ver os nossos. Deram-nos a cada um uma mulher em sinal de amizade, de noite saímos de lá para dormir numa aldeia mais perto da pedra, em casa do rei da terra. No outro dia chegamos à pedra, que se achava numa montanha extremamente alta e cheia de árvores. Achamos uma penedia muito alta no topo da montanha, muito alta e de grande perímetro, de calcário branco, ou seja alabastro. Nela subimos por meio de grandes troncos cortados e há muito montados pelos franceses em forma de escada – embora carcomida. De maneira que vimos a pedra que estava incrustada como em jaspe duro. Esta pedra era muito verde, como as esmeraldas. E como não dispusemos de instrumento para quebrar esse calcário duro, tivemos que deixá-lo. De modo que será preciso trazer alguns moços pedreiros com ferramenta para extrair essa pedra da montanha.

A uma légua de Mocuru encontra-se o rio Ceará, com água fresca. Podem entrar nele os iates, desde que não sejam muito grandes, porque os maiores ficariam melhor assegurados na Baía de Mocuru, onde podemos comodamente defender e fortificar.


A quatro horas de Mocuru fica na cidade deles: Tapirugh, com dois principais; um que se chama Kiaba e o outro Vawassouw. São tiguares de nação.

Os franceses estiveram em Tapiruch, mas não foram além.

Do Ceará terra adentro e a um dia de viagem de Tapirugh acima do dito está a montanha Boraguaba, onde deve haver uma mina de prata, cuja prata Gaspar e Andrés tocaram com as mãos e dizem tê-la reconhecido pela cor branca e consistência. É preciso fixar-se nisso, etc.

As mercadorias que esta gente gostaria de receber preferentemente são as seguintes: aoba, que são vestidos para homens e mulheres de tecidos ligeiros, segundo o modelo do nosso povo. Actinokug: camisas. Akanga-aobatinga: chapéus cinzentos. Kuguaba: pentes de marfim. Kisee: facas diversas. Pirania: tesoura de barbeiro. Daban: navalhas de babear. Bovura: contas diversas. Tangepenne: facões. Kisse-aparre: facões grandes e pequenos. Juga: machados. Uarouwa: espelhos. Pinda: anzóis. Inyaesingha: potes de ferro. Nymbahia: fio e agulha.

Eles oferecem em troca: pau-preto e pau-mosqueado, algodão, tabaco, pimenta do Brasil, favas turcas, óleo balsâmico e pedra azul. Também nitrato podem oferecer.

Cinco léguas além do Ceará encontra-se um riacho de água fresca, chamado Ypesem.

Cinco légua daqui encontra-se o Pará, que é bom ancoradouro e com boa água.

A uma légua do Pará, encontra-se um riacho chamado Couru.

A légua e meia de Couru está o riacho Tareguy, sem água fresca. Quatro léguas além, Tarayough, onde há água fresca na praia.

Cinco léguas e meia além, há um grande rio chamado Pounayug, sem água fresca.

Cinco léguas além, encontraa-se um rio grande, mas pouco profundo: Aracatihug, sem água fresca.

Seis léguas além, há um rio grande e pouco profundo: Paratihug, sem água fresca.

Três léguas e meia além, encontra-se um rio grande e pouco profundo: Timohug, sem água fresca.

Quatro léguas além fica Jericoacoara: boa praia, água fresca.

Quatro léguas além, encontra-se um rio grande e profundo: Ypeba, mas de água salgada.

Nove léguas além, há um grande rio, Camusipe, sem água fresca.

Aqui estaria uma mina de prata, vista por Gaspar, perto de uma montanha chamada Ybouyapaba[19], a qual De Laet descreve no seu livro[20]. Encontra-se do outro lado do rio, dois dias de viagem rio acima a partir do mar.

A menos de uma hora de lá encontra-se cristal, que eles chamam guarawa; e a menos de meia légua de lá encontra-se chumbo, ytayuck chamado.


NOTAS:

[1] Esta descrição encontra-se com variantes também nas págs. 68 a 72 do Roteiro de Hessel Gerritsz de 1629, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. [2] No manuscrito, Wacawassoivay = ParaoePPava [3] Paratihu = P.Marelo = Pau Amarelo? [4] Miriri, no manuscrito: Wireria. [5] No manuscrito, Ockita. Luís Gaspar é mencionado na lista dos brasilianos no Pág. 68 do Roteiro de Hessel Gerritsz de 1629 que se encontra na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. [6] Cabo Verde, no manuscrito: Averane = K. Verdiê. [7] Camaratuba, no manuscrito: Samarathoe, Camaragibe [8] No manuscrito: Poterug [9] Ver (223): declaração de Assuerus Cornelisz, preso na Paraíba de 14 de outubro de 1625 até 16 de maio de 1628. [10] Ver (146): ytawick. [11] Segundo o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de Antônio de Morais Silva ( 10 est. Vol, I, Lisboa, 1949, pág. 290) acori é um “coral azul, que se apanha nas costas da África”. [12] No manuscrito, subelarou. [13] Ver (145): tatawick. [14] Cargesoen = carregação: mercadorias. [15] As Guianas. [16] Ceará-Mirim. [17] No manuscrito: Yuguarich. [18] Para o diário de 1600 de J. B. Sijens, ver pág. 57 a 59 do Roteiro de Hessel Gerritsz de 1629 na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. [19] O mesmo que Ibiapaba. [20] Concretamente em Johan de Laet, Niueve Wereldt ofte Beschyvinghe van West-Indien (Novo Mundo, ou discrição das Índias Ocidentais), Leiden, 1625.


REFERÊNCIAS:


  • Descrição da costa do nordeste do Brasil entre Pernambuco e Rio Camocipe, do relatório dos brasilianos seguintes: Gaspar Paraupaba do Ceará, da idade de 60; Andrês Francisco do Ceará, da idade de 50 anos; Antônio Paraupaba de Tabussuram, que fica na distância de 2 dias no interior da Paraíba, da idade 30 anos; Pedro Poti, da idade de 20 anos. In.: LAET, João de: Roteiro de um Brasil desconhecido [Descrição das costas do Brasil - Manuscrito da John Carter Brown Library, transcrito, traduzido e anotado por B. N. TEENSMA]. Petrópolis, Rio de Janeiro, RJ, Brasil: Kapa Editorial, 2007. Pág. 134-146.

* Esta descrição encontra-se com variantes também nas pág. 68 a 72 do Roteiro de Hessel Gerritsz de 1629, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e pode ser consultada neste link:http://memoria.bn.br/pdf/402630/per402630_1907_00029.pdf


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